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memória dA CENA

O teatro e a dança praticados na América Latina abrem espaço para seus intérpretes-criadores. Lá e aqui, há sempre um compartilhar, um fazer, uma vontade criativa. Vamos conhecer melhor nossos artistas? A atriz e jornalista Patricia Galleto bateu um papo com os artistas convidados para a segunda mostra TERRITÓRIOS. Em nosso YouTube, você vai poder conferir as entrevistas feitas via Zoom com os seguintes artistas:

LUIZ CARLOS CARDOSO

LEO BAUTISTA

BERI CUETO

LUCÍA REIZNER

ESTEBAN BISIO

LEONARDO DARIVA

CAMILO SANDOVAL

CLIQUE AQUI E CONFIRA AS ENTREVISTAS

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Na primeira edição, em 2019, falamos sobre solos e monólogos, obras em que apenas um intérprete está em cena. Na ocasião, Patricia Galleto também conversou com os atores Luiz Carlos Cardoso e Amanda Malta, além da bailarina Ivna Messina. Abaixo, você pode ler as entrevistas. Eles falam um pouco mais sobre as motivações de levar seus trabalhos ao público, as dores e as delícias de se trabalhar com artes cênicas no Espírito Santo

e sobre seus projetos paralelos no mercado capixaba.

LUIZ CARLOS CARDOSO

Da figura austera de um pai que oprime seu filho à de um viajante que coleciona histórias e objetos por onde passa, o ator Luiz Carlos Cardoso apresenta ao público dois monólogos tão distintos quanto seus processos de criação – ao mesmo tempo em que ambos se comunicam fortemente com a vida do artista: A Culpa e Viajante, respectivamente. A Culpa, estreada em 2012, tem direção de Carlos Ola (Gota Pó e Poeira) e é baseada no texto Carta ao Pai, de Franz Kafka; Viajante tem direção e dramaturgia de Fernando Marques (Grupo Z de Teatro) e estreou no ano de 2014. O tempo e a experiência de manter os dois espetáculos vivos e atuantes até os dias de hoje conferiram também maturidade às obras, que, juntamente com Luiz, foram se modificando a cada apresentação e com o transcorrer dos anos. Entre as duas peças e simultaneamente a elas, desenhou-se uma coleção de outros trabalhos e projetos como intérprete e produtor, afinal, ele também precisou aprender a colocar em prática toda sua multiplicidade – ser múltiplo para poder ser múltiplo; ou ser o que se é. Em cena e sozinho, muitas nuances de um artista em busca de diálogos consigo mesmo, com o mundo e com os tempos em que vivemos. Na coxia e com uma rede de amigos e parceiros da arte, a realização de vários projetos que organicamente ultrapassam fronteiras territoriais, como este agora: Territórios. Nesta conversa, Luiz conta sobre sua trajetória, seus dois espetáculos solo e fala um pouco sobre produção no estado. Confira abaixo a entrevista!

A Culpa e Viajante estão na programação do projeto Territórios, que realizará apresentações de espetáculos solo de teatro e dança em Cachoeiro de Itapemirim (ES), além de oficinas e rodas de conversa abertas ao público. Territórios acontecerá de 26 de novembro a 01 de dezembro com entrada gratuita (confira a programação completa no link).

 

 

Do que fala A Culpa?

A Culpa é um espetáculo baseado no texto “Carta ao Pai”, do Franz Kafka, uma carta real que o Kafka escreveu para o pai e nunca foi entregue a ele. A mãe entregaria ao pai do Kafka, só que ela leu antes e achou que não seria interessante que o pai soubesse daquelas palavras, guardou a carta e, com a morte do Kafka, várias obras dele, incluindo essa carta, vieram a público. Então a gente tem aí a sabedoria familiar, de como o Kafka via o pai e de como essa relação com o pai influenciou toda sua obra literária. Eu tive contato com esse texto, relacionei com a minha história de vida com o meu pai e achei que aquilo poderia dar algum trabalho que me dissesse alguma coisa, que pudesse ser interessante para mim. Primeiro, nasceu como performance numa pós-graduação, “Kafka de Fora para dentro”, em 2011, e depois, em 2012, com toda a pesquisa sobre a obra do Kafka, sobre a vida dele, registros e fotos e criações que eu fiz, desenhos, rascunhos, juntei esse material e entreguei a um diretor de teatro, o Carlos Ola, e nós, juntos, montamos o espetáculo teatral, saímos da linguagem da performance e fomos para o teatro. Aí nasceu A Culpa, que está em cartaz há quase 8 anos, desde 2012.

 

A Culpa já esteve em muitos lugares, né?

Sim, A Culpa foi o trabalho que eu tive mais oportunidade de apresentar e viajar com ele. Suponho que já chegou na casa das 100 apresentações nesses 8 anos de espetáculo. Passou por festivais no nordeste, sudeste e sul do país, Uruguai, Chile, Colômbia, Itália e Portugal. Todas mostras, festivais, a convite, com uma oficina agregada ao espetáculo, ou só com o espetáculo.

 

Tratando-se de um espetáculo que está há muito tempo sendo apresentado, que mudanças você identifica, se não no próprio espetáculo, em você como intérprete?

No meu trabalho como ator desse espetáculo, ele foi ganhando uma maturidade através do meu corpo, da minha voz, nas minhas intenções – porque também paralelamente a A Culpa, eu fui fazendo outros trabalhos ao longo desse tempo e conhecendo outras pessoas. Então sempre esse aprendizado de montar um novo trabalho vai atingir os trabalhos já criados anteriormente. É assim com A Culpa, que hoje eu faço com um corpo muito mais consciente de cada movimento, as palavras são ditas de forma mais claras para mim, com mais propriedade, e foi ganhando um novo significado a partir do significado que eu vou dando para minha vida ao longo do tempo. É uma coisa que está muito mesclada, o próprio espetáculo está estruturado dessa forma. Existe uma quebra na qual eu me abro para o público, falo da minha vida, então não tem como eu não associá-la ao meu fazer teatral. E eu acho que a tendência é essa. Para ele se manter fresco, para eu continuar com ele em cartaz durante tanto tempo, só se for dessa forma. Se eu estagná-lo em uma caixa, acho que ele vai perdendo a validade. Se eu quero mantê-lo vivo, tenho que deixar que ele se atravesse, que se mantenha fresco a partir da minha própria vida, que eu me entregue a ele. E muda também a percepção do todo, do produto. A gente, agora, consegue apresentar o espetáculo com mais facilidade, ver de fora com mais tranquilidade, saber onde ele se encaixa ou não, qual o momento de fazer ou não.

 

Ele se mantém atual. É algo que diz também sobre os nossos tempos hoje...

O texto do Kafka é muito atual, verdadeiro, pungente, mas é uma preocupação desde o começo, quando eu adaptei a carta. A carta é cheia de nomes de lugares e pessoas, de datas, o que torna o texto muito marcado lá no começo do século XX. Quando eu adaptei, eu tirei tudo isso, e mantive só a relação entre o pai e filho, e acaba virando uma metáfora, como uma relação de quem manda e quem obedece, uma relação de mãe e filho, ou de filho com o pai. A questão é quem está sendo oprimido e quem é o opressor, até mesmo o Estado que nos oprime, dá para buscar quais são essas relações.

 

Foi o primeiro espetáculo solo que você fez, além de performances?

Foi, mas eu já tinha experimentado uma vez um solo de um trabalho chamado Arte e Existência, e aí foi a primeira vez que eu fui ao Chile apresentar, foi com esse trabalho, que era com 5 pessoas e ninguém pôde ir, só eu, então eu adaptei para uma pessoa, projetei o vídeo da apresentação e fazia simultaneamente sozinho e falando todas as falas em espanhol. A Culpa foi o primeiro trabalho pensado para ser um solo, além do primeiro trabalho teatral. A minha vivência com a performance era muito forte e eu tinha necessidade de mudar de linguagem naquele momento, mudar de ponto de vista.

 

Você enxerga alguma relação entre a construção de Viajante, que é seu segundo solo, e a sua experiência com A Culpa?

Viajante só nasceu por causa das viagens todas que eu fiz com A Culpa. Acho que uma obra não influenciou na outra artisticamente, mas o meu percurso com o trabalho, de ir para vários lugares e muitas vezes sozinho, me fez ter várias visões, escutar muito, ficar pensando muito em lugares onde não tinha ninguém para conversar, ou que tinha muita gente perto e eu queria prestar atenção no que estava acontecendo. Então eu registrava isso na memória, ou anotando, tirando fotos, filmando, e isso tudo eu fui juntando. O meu material de pesquisa foram histórias dos outros, em lugares diferentes, que, ao mesmo tempo, são muito próximas, são seres humanos com vários dilemas parecidos com os meus, várias alegrias parecidas com as minhas, somos todos muito iguais. Eu fui tendo essa percepção com as viagens de A Culpa, de como a gente é tão diferente e tão igual no mundo todo. Eu fui anotando isso e depois trouxe para o Fernando Marques, dramaturgo do Viajante.

 

Um ponto comum entre os dois espetáculos é que são trabalhos muito pessoais, são criações de que a gente se apropria muito. A Culpa tem o texto do Franz Kafka, Viajante é um texto construído para mim, para o espetáculo. Mas mesmo sendo uma obra do começo do século XX e uma obra de agora, são coisas das quais a gente teve que se apropriar para colocar na boca, no corpo, na presença, na cena, na energia. Se não rolasse essa apropriação, acho que não ia rolar o espetáculo, o projeto. É uma característica muito forte de um solo, você se apropriar dele, porque por mais que tenha a pessoa da técnica, da produção, da iluminação, chega uma hora que, em algum momento, você está sozinho. Na solidão, o que você pensa, o que você fala, o que você faz? E um monólogo tem isso. A solidão está presente em algum momento.

 

Como foi o processo de Viajante?

Eu não conhecia o Fernando Marques, eu sabia que ele era uma pessoa de teatro, descobri que ele trabalhava com o Grupo Z. Eu cheguei com essas histórias para ele, em 2013, eu nunca tinha visto nenhum trabalho do Z, não conhecia ninguém do grupo, só sabia que ele era um cara de teatro em Vitória. E eu também já estava querendo sair de Cachoeiro, meio que as coisas foram se dando ao acaso também. Foi ao acaso e uma sorte, porque ele tem uma linguagem com a qual eu me identifico. Eu trouxe, então, as histórias para ele, e ele já tinha o interesse de montar um trabalho com malas, objetos que tivessem histórias, ele estava com o Grupo Z viajando também, na época em que eu também viajava, então as coisas foram se casando. A gente experimentou essas histórias que eu tinha num caderno que eu levei para ele, muita improvisação, e depois seguimos num método que ele propôs, que é um método comum no Grupo Z de construção dramatúrgica – experimenta-se em sala de ensaio, ele vai para casa, escreve a partir do que ele viu, de suas percepções, e me entrega um texto, eu decoro o texto e vamos para a sala para ver como a cena se dá com aquele texto.

 

E o espetáculo, então, traz essas histórias de várias pessoas, por onde você passou?

São histórias ficcionais, existem alguns traços de coisas que eu trouxe, de coisas que ele trouxe, mas os nomes são ficções, são personas criadas para o espetáculo, com alguns traços de personalidade, com algum desenho de cenário, são referências pessoais de verdade, são misturas. Uma união de referências das minhas viagens e das dele. Não tem como não ser.

 

O que levou você a fazer esse percurso por monólogos e outros projetos independentes?

São circunstâncias e são vontades. Vontade, eu nem sei se tem uma explicação, em algum momento nasce. Nas Artes Cênicas, que é a linguagem que eu escolhi, principalmente a performance e o teatro, eu sempre tive vontade de me expressar, de dizer, de ser independente, não sei se por ser filho único, se por morar no interior e ter referências com o mundo, ser de uma era tão conectada, tão globalizada, de querer estar em todos os lugares ao mesmo tempo – são vontades. A iniciativa de fazer tem a ver com a vontade, porque, se eu quero fazer, tenho que tornar aquilo concreto, senão vou ficar frustrado e depressivo. E aí veio o trabalho com produção, que foi se dando na circunstância, quase por uma necessidade – se eu quero fazer acontecer... então eu tive que errar muito, tive que aprimorar a qualidade do que eu faço, aprender errando, vendo, dialogando, muita cara de pau. Isso tem a ver com fazer solos.

 

Diante da sua experiência com solos, o que você destacaria entre facilidades e desafios nesse formato de trabalho?

Eu acho que as facilidades estão em ter uma liberdade expressiva, você tem a liberdade de dizer o que você quer dizer. Você tem um compromisso e uma responsabilidade com o público para o qual você vai dizer, isso é fundamental e vai-se descobrindo com o tempo, fazendo. Quando se tem isso claro, você também tem mais claro ainda o que está fazendo e o que está falando, então um monólogo traz bastante isso. Tem algo muito dentro de mim, que eu preciso levar para fora e só eu posso fazer isso, por isso estou ali sozinho falando. Além disso, tem algumas facilidades logísticas de poder levar o espetáculo para onde você quiser, você faz só com uma cadeira, ou faz sem cadeira nenhuma, o dinheiro é mínimo, e cada vez menos, você paga para fazer, você faz para ninguém, para duas pessoas, mas você está lá fazendo, está lá falando, não tem como fugir disso, por vocação mesmo. E tem as dificuldades, quem quer ouvir aquilo? Às vezes, duas pessoas querem ouvir, às vezes, uma multidão quer ouvir e está lá lotando a sala. Dinheiro também é uma dificuldade.

 

Você acredita que mais artistas podem estar procurando o formato solo também como uma espécie de estratégia de sobrevivência ao enxugamento de verba destinada ao incentivo à cultura, em termos nacionais?

Eu concordo, esta é uma realidade nossa. É mundial, mas, no Brasil, muito latente agora com o atual governo e a desvalorização total do artista e da arte brasileira, da cultura brasileira, mas tem uma questão aqui. Eu comecei a fazer teatro em Cachoeiro, na faculdade, e depois que saí criei um grupo de recém-formados que hoje tem quase 11 anos. Nessa trajetória, tudo sempre foi muito precário, no sentido de ter zero para fazer. Aí, então, eu aprendi a fazer com nada. Eu não sabia nem o que era edital, por exemplo. Eu demorei anos para passar no primeiro edital. Meus primeiros projetos não foram fruto de edital. A Culpa ia ser feita com 600 reais tirados do nosso bolso, e foi um dos primeiros editais no qual a gente passou para conseguir fazer. Eu sei o que é fazer sem nada, e hoje eu também sei o que é fazer com dinheiro, edital e patrocínio. Dependendo do que se pretende, é possível fazer um espetáculo com cinco, sete pessoas, sem dinheiro, e é possível fazer um solo também, mas eu sei que, se há vontade, se há união de pessoas, profissionais querendo fazer, se há um discurso efetivo, que vai chegar às pessoas, vai acontecer porque a resistência nasce primeiro na gente. Um solo é um trabalho de resistência entre os mais fortes das Artes Cênicas, porque está na resistência do que você vai dizer, do que você acredita, e isso é muito forte. São discursos, sensações e emoções que estão se multiplicando. Cada vez mais, artistas solo estão se integrando, interagindo, por causa dos discursos que se conversam. O que eu sinto, o que você sente; você tem o seu solo, quando você diz o que você sente, eu também sinto, e as coisas estão aí se multiplicando. São várias pessoas fazendo solos, mas que são um grupo, no final das contas.

 

Foi a partir daí que você teve a ideia do projeto Territórios?

Sim, porque as pessoas estão se dando as mãos. Estão buscando solos, lugares para pisar – e que territórios são esses onde o artista chega e fala, sozinho e para uma multidão, nós e o mundo? Que lugares são esses? Eu acho que nós, no Espírito Santo, temos historicamente um cenário, nas Artes Cênicas, de guerrilha, de força e resistência, porque nós estamos rodeados de três estados que são polos nas Artes Cênicas e a gente faz o quê? Nós temos uma força, temos um discurso muito interessante, nós estamos entre os melhores artistas do país quanto à qualidade, à produção e ao discurso, quanto às políticas públicas, que ainda persistem – com suas várias questões, mas ainda temos editais de cultura, ainda temos uma Secretaria de Cultura, existem municípios com leis de incentivo. Isso não é em qualquer estado do Brasil, e ainda temos um público, pode não parecer para muitos artistas, mas ainda temos um público interessado, sedento de artes e manifestação cultural. A gente vai para a praça, as pessoas param em algum momento para assistir, a gente vai para os teatros, elas param para entrar. A coisa está acontecendo. E, cada vez mais, se a gente puder unir as pessoas que fazem e os públicos que estão interessados, é melhor. Se existe uma lei de incentivo para patrocinar este projeto, se existem artistas fazendo, então por que não? Temos que multiplicar isso. Por isso, o Territórios.

AMANDA MALTA

A vida e a obra da poetisa norte-americana Emily Dickinson (1830-1886) são levadas à cena no espetáculo solo Emily, interpretado pela atriz Amanda Malta e dirigido por Mário Ferreira. Marcada por uma vida reclusa e pela produção de poemas majoritariamente conhecidos após sua morte, a história da escritora afetou profundamente o trabalho e a vida pessoal de Amanda ao longo de dois anos de construção do espetáculo, realizado a convite do diretor. A atriz, que tem dedicado boa parte de sua carreira ao ensino das artes e à produção cultural em sua cidade, Cachoeiro de Itapemirim, conta, nesta entrevista, como se desenrolou esse processo de montagem antes que o trabalho ganhasse o formato atual – e como esculpir Emily esteve intimamente relacionado a um mergulho em si mesma e a revirar questões de sua própria vida. Assim como a atriz, o espetáculo amadureceu em sua prática (realizada quase como um laboratório permanente de experimentação), com apresentações em festivais de teatro pelo Brasil. Confira abaixo a entrevista!

Emily está na programação do projeto Territórios, que realizará apresentações de espetáculos solo de teatro e dança em Cachoeiro de Itapemirim (ES), além de oficinas e rodas de conversa abertas ao público. Territórios acontecerá de 26 de novembro a 01 de dezembro com entrada gratuita (confira a programação completa no link).

 

 

Em que contexto surgiu a ideia de montar o espetáculo Emily?

Emily nasceu de um trabalho experimental. Eu tinha acabado de voltar para Cachoeiro do Itapemirim, depois de morar quatro anos em Vitória sem conseguir trabalhar com teatro. As pessoas em Vitória são muito fechadas e, quando não há quem te conheça e já esteja dentro da área, é muito complicado entrar. Eu até fui convidada para trabalhar com o Wilson Nunes uma época, mas, como eu trabalhava em shopping e eles ensaiavam no final de semana, não consegui fazer parte do elenco. Então eu fiquei sem trabalhar com teatro e isso estava me fazendo muito mal. Falei: “vou voltar para Cachoeiro”.

 

E em Cachoeiro, antes de ir para Vitória, você estava atuando com isso?

Eu faço teatro desde os sete anos de idade em Cachoeiro de Itapemirim, comecei no Grupo ELA de Teatro, que é um grupo que tinha um nome muito grande na cidade. Com 18 anos, me tornei atriz independente, tirei meu registro profissional, depois fiquei só trabalhando com o Mário Ferreira, que era do mesmo grupo. Com 20 anos, fui para Vitória e voltei para Cachoeiro quatro anos depois, de 2013 pra 2014. Comecei a trabalhar muito porque eu voltei com gás total – com produção, aula de teatro, fiz algumas oficinas para me atualizar e fui metendo a cara. Meu antigo diretor, Mário Ferreira, me reencontrou e me disse que queria muito montar um texto que ele tinha há muitos anos, que não tinha ninguém para montar e me via no texto. A gente começou a conversar sobre isso, em 2017, e foi para a sala de ensaio. Foi muito sofrido, não foi fácil porque eu estava parada. Apesar de me atualizar, estar em cena é completamente diferente, e atuar sozinha é pior ainda porque eu não tinha ninguém para me socorrer, era eu ou eu. E aí a gente começou a montar Emily, também através de um pedido do Luiz Carlos Cardoso, que tinha um projeto chamado Sarau Verbo Intransitivo, no qual a gente teria que apresentar 5 minutos de algum trabalho.

 

Vocês já tinham a ideia de montar um espetáculo inteiro?

Não, era só um trecho para esse projeto. Acredito que ele tenha pensado assim: “Se eu montar esse trecho e der certo, vou querer montar o texto inteiro, como tinha falado com ela que eu queria montar”. Entramos em sala de ensaio, só que, até acontecer o Sarau, havia uma distância muito grande desde quando começamos a nos encontrar e, nesse meio tempo, surgiu um festival de teatro no Rio de Janeiro, que se chama As Lucianas, para trabalhos com 10 minutos de duração. Então, ao invés de montarmos 5 minutos, montamos 10. Eu estreei no festival com 10 minutos de trabalho. O diretor fez uma adaptação do texto que era de quase 50 minutos e depois fez uns recortes.

 

Como é esse texto?

O texto é sobre a poetisa Emily Dickinson e o autor é William Luce. Emily nasceu em Amherst, nos Estados Unidos. Foi uma mulher solitária a vida toda, na década de 30, trancada no quarto; nunca teve seus poemas publicados antes de morrer, só depois. Quando ela faleceu, descobriram mais de 150 poemas debaixo da cama dela. Ela era uma feminista sem saber. A contragosto do pai, escrevia a noite toda e, às vezes, ele a pegava escrevendo e brigava com ela. Uma vez (isso é relatado no texto) ele a pegou escrevendo e, pela primeira vez, pediu para ela ler um poema para ele. Ela ficou muito nervosa e escolheu o pior poema que ela já tinha escrito e leu para o pai. Ele olhou e fechou a porta de novo, e ela ficou com isto na cabeça: “No momento que eu tinha para impressionar meu pai, eu li meu pior poema”. Ela teve paixões distantes, sempre por carta, poucas vezes saiu de dentro do próprio quarto, de dentro da própria casa. A imagem dela é muito do quintal da casa que dividia com o vizinho.

 

O espetáculo, então, foi sendo montado aos poucos?

Exatamente. A gente começou a montar com 10 minutos, enxugamos para 5 minutos, depois aumentamos pra 20 minutos e fomos pra Curitiba, lá fizemos na rua porque a gente precisava de hospedagem. Graças a deus, a rua lá em Curitiba é muito maravilhosa, te recebe, te acolhe, não tivemos a mesma experiência em Guaçuí, e foi quando decidimos não ir mais para a rua com esse espetáculo. E de Guaçuí, a gente foi pra Uruguaiana (RS), no Festival de Uruguaiana, no qual fui indicada melhor atriz, sem ganhar. Lá a gente fez essa montagem de 40 minutos. O espetáculo também já teve a participação de um músico ao vivo e uma bailarina, mas acabou não ficando assim. Agora a gente tem uma proposta diferente, sou eu em cena de novo sozinha, trocamos o figurino, o texto é o mesmo, com 40 minutos, vamos trabalhar com um jogo de sombra com tecidos na vertical, como se fossem várias Emilys.

Foi bem difícil montar esse espetáculo, tanto financeiramente quanto artisticamente. Foi apanhando que a gente foi aprendendo o que dava, o que não dava, o que tinha que tirar, o que tinha que colocar, e também não era o espetáculo final o que a gente queria, era uma experiência mesmo, era totalmente experimental, principalmente para mim como profissional.

 

Foi quase um laboratório permanente?

Sim, porque voltei do nada e com vários questionamentos: Como está este corpo? Como está esta atriz? Como estão os interesses desta profissional? O que eu quero de verdade? Quais são as minhas idealizações através da arte? Foi um desafio para mim e aquilo, também como pessoa, me amadureceu, inclusive porque eu estava lendo Emily e, através da dramaturgia dela, eu tinha que ler outras coisas para poder conhecer um pouco mais do mundo dela. Se ela era uma mulher pressionada, eu precisava ler sobre o feminismo, e eu me tornei uma experimentadora do feminismo. A partir daí, eu me separei porque eu tinha um relacionamento abusivo (e só então eu descobri que era um relacionamento abusivo). Olha o que o teatro faz com a gente. Transforma a vida.

 

Você acha que o contexto da escritora Emily pode se relacionar com os dias de hoje?

Totalmente. E olha que ela era da década de 30. Mas a mulher continua vivendo a mesma coisa, claro que tem as suas diferenças, mas, para mim, dentro do nosso ser, a gente é abusada da mesma maneira, só que com umas formas diferentes, com outras palavras e atitudes, mas é a mesma coisa. São várias Emilys pelo mundo – ou poetisa, ou artista, ou cantora, ou intérpretes que vivem tentando seu espaço como ela tentou também. Ela tentou publicar vários poemas, mas, como era década de 30 e o machismo era muito grande, só homens publicavam.

 

O fato de ser um solo trouxe desafios ainda maiores a esse processo de construção?

Tudo foi muito novo. Eu nunca imaginei ter coragem de fazer um solo. A minha maior bagagem é de espetáculo infantil. No grupo, cada um se ajuda e tem uma equipe. No solo, é você, a luz e o som. Quando tinha a bailarina e o músico, a troca de energia era muito boa, apesar de eles não me ajudarem no texto nem na marcação, mas tinha um olhar, e isso me ajudou a me acostumar um pouco a pensar em trabalhar sozinha no palco. Eu senti dificuldade física, porque você trabalha ali sozinha com seu corpo, tem que estar ocupando todo o espaço, tem o trabalho de voz, as entonações têm que estar afinadas com o texto. É só você. Só que as minhas lembranças da experimentação com o músico e a bailarina se tornaram minhas companheiras em cena. Quando eu faço as cenas em que eu ficava cara a cara com a bailarina, por exemplo, não me sinto sozinha, eu sinto toda aquela energia que já experimentei. Mas não foi fácil não, a montagem foi muito dolorida, eu chorei muito, teve um momento em que eu achei que não fosse conseguir montar o espetáculo, principalmente pela história, que é forte, e pela responsabilidade de estar em cena sozinha. Eu nunca tinha feito um solo, eu ainda estou me acostumando.

 

Como você vê a produção de solos no Espírito Santo?

No Espírito Santo, em geral, é uma realidade, até porque é mais barato para o artista que está fazendo, o máximo que você precisa levar é um iluminador e talvez um cenógrafo, se tiver muita coisa, então é economicamente viável. Para o Espirito Santo, eu vejo solo crescendo muito, tanto em dança quanto em teatro, mas em Cachoeiro não tenho essa perspectiva, raramente as pessoas escolhem montar solo em Cachoeiro.  Na verdade, Cachoeiro é uma cidade ainda que precisa conhecer arte em si. Gosta-se muito de entretenimento, da comédia escrachada, que traz o que tem na televisão. Em Cachoeiro, um monólogo meu não enche teatro nem com 100 pessoas. O Luiz tem uma carreira de solo em Cachoeiro muito interessante, tem A Culpa, Viajante, vai público. São sempre as mesmas pessoas que voltam porque se interessam por aquilo ali, aquilo toca de alguma forma. Não consigo me lembrar de outra pessoa.

 

É um trabalho de formação de público também, não é?

A gente tem muita dificuldade de formação de público em Cachoeiro, e olha que saem muitos artistas da cidade. Parece que Cachoeiro tem uma formação quase universitária de artistas, mas eles saem, não ficam. É também por isso que eu fico em Cachoeiro. Eu tive oportunidades de ir para outro lugar, mas eu sinto a necessidade de mudar a cabeça das pessoas dentro da cidade; de que elas precisam frequentar o teatro não porque elas vão rir, mas porque vão conhecer algo diferente lá dentro, vão poder pensar, refletir. É um trabalho de formiguinha, mas eu não vou desistir. Eu me inspiro muito em Newton Braga, que é um cara que foi para Belo Horizonte, voltou pra cuidar da família, botou Rubem no lugar dele, Rubem Braga ganhou o mundo e ele ficou aqui em Cachoeiro, quietinho. E aí o quietinho que ele ficou, se for pesquisar, criou todos os eventos culturais da cidade que a gente tem hoje, até a parte de patrimônio material, os mestres, em tudo isso ele ajudou. Caxambu, ele adorava esse tipo de cultura popular. Então o cara fez, sabe? Só não é valorizado, mas o cara fez muito pela cidade, e eu tenho meio essa utopia de ajudar a continuar crescendo, mudar a cabeça das pessoas.

IVNA MESSINA

Quarta-feira de cinzas e uma mulher remexe as memórias do carnaval recém-finado. Assim começa Bom Sujeito, espetáculo de dança da bailarina Ivna Messina, com direção de Fernando Marques, estreado em 2016 em Vitória. A parceria entre os dois artistas extrapolou o Grupo Z de Teatro, do qual fazem parte, e deu origem ao primeiro trabalho solo de Ivna, trazendo a fusão do Flamenco – dança e cultura espanhola que a bailarina pesquisa há quase 20 anos – com o Samba e o Carnaval, tipicamente brasileiros. Com trilha sonora especialmente composta para o trabalho e dirigida por Letícia Malvares e Roberto Monteiro, Bom Sujeito enfatiza uma aproximação entre essas duas manifestações artístico-culturais que são cartões-postais sonoros e corporais de seus respectivos países, buscando seus pontos em comum e confundindo seus limites. Nesta entrevista, Ivna conta como chegou a essa proposta, que também é parte de um projeto intitulado “Isso não é Flamenco”, iniciado pela bailarina em 2012 com o intuito de dialogar com outros artistas e linguagens, e como o espetáculo gerou outros frutos. Confira abaixo a entrevista!

 

Bom Sujeito está na programação do projeto Territórios, que realizará apresentações de espetáculos solo de teatro e dança em Cachoeiro de Itapemirim (ES), além de oficinas e rodas de conversa abertas ao público. Territórios acontecerá de 26 de novembro a 01 de dezembro com entrada gratuita (confira a programação completa no link).

 

 

Como se deu sua formação na área da dança e como surgiu o interesse pelo Flamenco?

Eu comecei a estudar ballet clássico com oito anos e, nessa mesma época, eu já comecei a fazer parte do grupo amador da escola. Estudei outras linguagens de dança, como jazz e dança contemporânea, e quando eu tinha uns 15 anos, comecei a estudar flamenco paralelamente ao ballet. Continuei dançando clássico até que, em 2003, entrei para o grupo de flamenco Alma Andaluza, começamos a fazer espetáculos e eu passei a estudar mais o flamenco dentro e fora do estado. Fui me especializando nessa área, parei de dançar ballet em 2006, aproximadamente, mas continuei dançando flamenco e trabalho autonomamente com a dança flamenca até hoje.

 

Em 2007, entrei para o Grupo Z de Teatro e foi quando eu comecei a vislumbrar a possibilidade de usar o flamenco como algo que não fosse o tradicional do flamenco – porque montamos o espetáculo “Quatro intérpretes para cinco peças” e a Carla van den Bergen aproveitou essa técnica que eu tinha em uma das cenas, e foi a primeira vez que eu tive essa experiência de desconstruir o flamenco.

 

 

Como surgiu Bom Sujeito, que foi seu primeiro solo, e essa ideia de aproximar o flamenco do samba?

Eu estava tentando montar esse espetáculo desde 2012, 2013. Basicamente, foi ouvindo sambas. Quando eu estive na Espanha, vi como as letras de flamenco ficam no inconsciente das pessoas de lá, igual aqui a gente cantarola um Cartola, Nélson Cavaquinho, ou as músicas de enredo muito famosas, isso fica na gente, todo mundo sabe dar uma sambadinha, mesmo que não seja muito próximo ao samba ou não esteja nas comunidades, nas escolas de samba. Há esse envolvimento indireto. Para mim, foi um paralelo que eu consegui fazer a partir da minha experiência lá. Além disso, quando eu ouvia alguns sambas, ou em festas, em lugares que tinha alguém tocando, eu ficava brincando de fazer sons, sapateadinhos, palminhas, igual no flamenco, como eu faço na primeira cena do espetáculo. Ficava imaginando.

 

Em 2013, teve um festival de dança do Estado, eles tinham edital para novos coreógrafos, e eu fiz uma coreografia que acabou não passando, com a música “O Mundo é um Moinho”, do Cartola, e tinha confete, eu dançava com a bata, que varria o confete. Não passou, mas eu falei com o Fernando Marques (parceiro no Grupo Z) que eu tinha feito esse trabalho e começamos a conversar sobre isso. Ele achou legal e falou para eu pensar mais a respeito. Comecei a criar várias imagens na minha cabeça que eram possíveis a partir dessa aproximação do flamenco com o samba, que era a pessoa ali dormindo de ressaca, só com o pezinho sapateando, tinha isso do confete, da bata, das fantasias. Eu criei várias imagens, comentei com o Fernando e ele falou para eu construir um roteiro. A cada edital que eu ia tentando e não passava, eu ia aprimorando o projeto, repensando se era aquilo mesmo, ao mesmo tempo, eu experimentava algumas coisas em sala de ensaio, ouvia sambas e ia improvisando, pensando em várias coisas que, depois, foram importantes para construir esse roteiro, até que o projeto passou na Lei Rubem Braga em 2014, montamos ao longo de 2015 e estreamos em 2016.

 

 

Você conta que são duas manifestações muito populares, tanto o flamenco quanto o samba. Queria que você falasse um pouco dessas aproximações que você vê.

Acho que tem essa coisa da roda, do improviso, das letras populares, que todo mundo sabe cantarolar, às vezes, isso de uma letra ir emendando na outra, que acontece em uma roda de samba e nas festas de flamenco. O conteúdo das letras, que falam de amor, desilusão, festa, amizade, decepção, luto, às vezes. Nos dois casos, também acontece uma miscigenação cultural. Aqui, com o encontro das culturas afro-diaspóricas, europeias e indígenas; na Espanha, do encontro de ciganos, mouros, árabes, judeus e culturas americanas por causa das navegações. São duas manifestações que têm forte esse caráter de miscigenação, embora se caracterizem como tipicamente nacionais, uma no Brasil e outra na Espanha. São nacionais, mas formadas a partir de uma multiculturalidade.

 

Além disso, os dois foram construídos, num primeiro momento, no meio popular, indo depois para ambientes mais elitizados. Tanto o flamenco quanto o samba nasceram no gueto e eu acho que essa é uma aproximação muito forte. Outra coisa é que acho que a imagem da mulher mais velha, das pessoas mais velhas, quanto elas são importantes, tanto no samba quanto no flamenco, é muito respeitada. Essa pluralidade corporal também é presente. Não existe o corpo “x” para dançar samba nem flamenco, como acontece no ballet clássico, para o qual você tem que ter aquele corpo específico. Acho que isso vem do caráter popular também. Um pouco da brincadeira, do improviso que existe na rua, o jogo, a malandragem, a burla. A questão da percussão também é muito forte, do violão forte, cada qual à sua maneira, mas são duas coisas muito fortes, a palma, a mesa, o encontro.

 

 

E vocês procuraram trazer esses elementos para o espetáculo...

Isso. Trazer essas imagens, essas referências. Eu fiz a dramaturgia, o roteiro e a coreografia, e o Fernando atuou na direção e como dramaturgista, que seria uma pessoa que vê o todo de fora – eu com o argumento, e ele do ponto de vista de olhar aquele material e fazer essa costura, não como texto, mas como enredo. O dramaturgista tem esse papel de olhar o corpo, a cena, a imagem e fazer esse arremate.

 

 

Como foi construída a trilha e como ela entrou no espetáculo?

Eu fiz uma seleção de músicas mais conhecidas, como Cartola, Arnaldo Antunes, Nélson Cavaquinho, e convidei a Letícia Malvares para fazer a direção musical. Ela é flautista, formada em música, e sempre tocou música popular brasileira, só que, nos últimos anos, começou a pesquisar o flamenco, então, se tornou uma flautista de flamenco. Ela tem esses dois trabalhos: a pesquisa dela – toca chorinho, samba, xaxado, música popular brasileira, já tocou em orquestra de MPB, tem uma banda de música popular brasileira – e é uma das únicas flautistas de flamenco do Brasil. Ela mora na Espanha atualmente, e a gente foi se comunicando via internet, eu ia falando para ela o que queria, o que estava pensando, ela ia me mandando algumas coisas. Eu a trouxe para Vitória e, quando ela veio pra cá, assistiu ao ensaio, a gente foi levantando ideias. 

 

O Roberto Monteiro acabou assinando a direção musical junto com ela. Eles criaram várias músicas e também adaptaram outras que a gente tinha pensado para o espetáculo, fizeram som incidental também e, lá, eles conseguiram várias parcerias de amigos que toparam ajudar na composição dessa trilha. É uma trilha que mistura elementos do flamenco com samba-enredo, marchinha de carnaval, samba-canção, o samba de um modo mais amplo.

 

 

Bom Sujeito também faz parte da continuação de um projeto que você desenvolve desde 2012 chamado “Isso não é flamenco”, que tem como característica principal misturar linguagens e convidar artistas de outras áreas para desenvolver um trabalho com você. Qual é seu interesse nessas combinações?

Eu acho que isso tem a ver com a minha formação, porque eu estudei diferentes estéticas de dança, sou formada em Artes Plásticas e em Fotografia, tenho essa experiência de trabalhar com o Grupo Z, que é um grupo de teatro com uma proposta corporal forte, que já vai para a dança contemporânea. Isso cria meu interesse de não me fechar em uma só linguagem. Se eu faço fotografia, não faço apenas fotografia, ou apenas vídeo, geralmente, eu mesma, nos meus próprios trabalhos, já cruzo as linguagens, tenho essa busca por cruzar as linguagens. Esse meu interesse faz com que eu busque outros artistas que têm linguagens que eu não domino, que aí a gente vai poder construir outra proposta ainda.

 

Quando eu fui para a Espanha, tive aquela experiência de ver o quanto o flamenco é deles, o quanto eles vivem aquilo e como está impresso em quem nasce lá, aí fiquei pensando em qual é a minha aproximação dessa linguagem, em como eu posso aproximar isso de mim. Uma maneira foi pensando em como transformar isso, usar esse conhecimento que eu tinha em outras coisas. Não simplesmente ficar estudando a coreografia que eu aprendi lá na Espanha; era uma maneira mais genuína de eu me aproximar, de ser mais íntimo de mim, eu olhar para isso e construir uma outra coisa. Acho que foi uma maneira de eu me aproximar do próprio flamenco – uma negação que, na verdade, é uma aproximação. Uma apropriação. Uma tentativa de me apropriar disso.

 

 

Qual foi o maior legado que a experiência de Bom Sujeito deixou para você enquanto artista? É possível estabelecer alguma relação com o seu segundo solo, Pedra, estreado no ano passado?

Ter feito Bom Sujeito me trouxe uma noção maior sobre autonomia no meu percurso, me fez pensar, rever e reafirmar várias coisas nesse sentido. Foi um trabalho em que precisei estar em muitas funções, e sigo estando, para dar conta de que o trabalho fosse criado e continuasse a existir. Além disso, me trouxe mais contorno sobre meus interesses enquanto artista: sobre quais assuntos eu quero falar, quais modos de criação estou interessada, quais laços de parceria e colaboração quero fazer. Depois de ver Bom Sujeito pronto, tive uma percepção de para onde o trabalho foi. Ele surgiu de um interesse estético, de aproximar culturas, e, por fim, isso se materializou na história de uma mulher só, que passa pelo delírio, pelo prazer, pela dor... Isso ficou muito forte no trabalho, no final das contas, e acabou norteando o interesse de criação de Pedra. Em Pedra, mais uma vez, falo sobre ser mulher, dessa vez, propositalmente, e claro, dentro de uma perspectiva de mundo na qual eu vivencio, e relaciono isso à uma outra linguagem, que é a Geologia.

 

 

A criação de Bom Sujeito e, consequentemente, a experiência com dois trabalhos solo consecutivos também despertaram seu interesse em propor um núcleo de pesquisa em dança que incentiva e orienta a produção de solos no Espírito Santo, o Lab.IC?

Sobre o Lab.IC, a experiência de criação de Bom Sujeito tem, sim, muito a ver com a realização desse projeto. Apesar de eu fazer parte de um grupo do qual tenho muito orgulho e no qual sinto prazer em trabalhar, também tenho meus desejos individuais enquanto artista, que nem sempre podem ser realizados pelo grupo. Vejo que outros artistas têm esse desejo de se colocar, de criar. E com a escassez de espaço de formação e criação de dança no estado, vejo muita gente frustrada por não conseguir dar vazão a esses anseios. Realizar o Lab.IC teve a ver com compartilhar minhas experiências enquanto intérprete-criadora e artista autônoma da dança. Muita gente tem uma ideia, mas não sabe como executá-la, por onde começar, qual é o caminho. O que quis fazer foi incentivar que mais gente pudesse seguir esse caminho de autonomia e que esses artistas também pudessem reverberar isso para outros companheiros, dando força, criando rede e aquecendo o ambiente da dança no estado.

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